Luiz Camillo Osorio

Despojamento e instabilidade (Junho 2009)

A trajetória de Frida Baranek está marcada pelos seus deslocamentos constantes. Uma diáspora poética voluntária que a fez sair do Brasil, estudar nos Estados Unidos, voltar ao país, mudar-se para a Europa, Paris e depois Berlim e, finalmente, fixar residência em Nova York. Assumidamente sem lugar — ou sendo um pouco de todos os lugares ao mesmo tempo — buscou na escultura um contraponto ao movimento. O peso e uma materialidade bruta são desde os anos 1980 elementos recorrentes de sua poética, uma forma provisória de enraizamento dada a contingência do movimento. O uso dos materiais é um fator determinante em sua poética. Eles se apresentam sem recusa de uma pulsação caótica original, tensionados por uma ação ordenadora. É do interior desta tensão entre estrutura e informalidade que se desprendem, silenciosamente, inquietações simbólicas. Elementos do corpo – bocas, vulvas – surgem em algumas peças sem perda da concretude escultórica. Poder perceber alguma referência não nos retira a presença física da obra, apenas acrescenta outra possibilidade, uma insinuação imagética atrelada à materialização da escultura. Neste aspecto, vejo algum diálogo com a obra pós-minimalista de Eva Hesse, sendo que a estranheza tensa dos materiais, que denomino de derivação simbólica, tem alga do Tunga. De uma, a sutileza bruta dos materiais, do outro, o estranhamento simbólico.

A tensão entre interior e exterior, entre vazios e cheios, entre volumes leves e pesados, formas moles e duras, contribuem para nos desorientar e, ao mesmo tempo, nos seduzir. Estas ambivalências da forma traduzem uma presença escultórica instável, um modo de ser em constante mutação, ora símbolo, ora peso, ora grito. Da contundência da matéria à insinuação expressiva, a inquietação formal expõe sua transitividade existencial. Assim como sua vida, sua escultura é deslocamento e adaptação.

É de dentro deste processo de constante reinvenção de si que percebo suas novas peças denominadas “exteriores”. O estranhamento abandonou a matéria, as insinuações simbólicas desapareceram. Há uma contenção quase minimalista. São dois simples decks de madeira instalados sobre tubo de ferro. Um é retangular com dois por quatro metros e o outro quadrado com dois metros e oitenta três centímetros de cada lado. No primeiro, o tubo passa pelo meio da peça, dividindo-a; na outra, ele corta pela diagonal. Neste último caso, a impressão de desequilíbrio é ressaltada. A idéia é que as pessoas subam nas esculturas e busquem o ponto de equilíbrio. Este esforço do equilíbrio remete ao processo de deslocamento e adaptação onde sua vida e obra se aproximam. Como observou a artista, “na criação dessas duas peças com movimento me aproximei da surpresa e do tempo que estão sempre presentes pelo simples fato de que alguma coisa acaba de acontecer e outra está para acontecer”.

Uma coisa que chama logo a atenção é que essas esculturas desestabilizam o chão. Subir nelas é ter a experiência do desequilíbrio, saber que um movimento acabou de acontecer e outro está para acontecer. Neste aspecto, são esculturas anti-gravitacionais, elas não nos fixam no solo, elas não nos servem como metáfora de nosso peso, estabilidade e lugar. Ao contrário, elas evidenciam a procura do lugar, do ponto de equilíbrio que está sempre prestes a se deslocar. Estas esculturas trocam o peso e a verticalidade pela instabilidade e a horizontalidade. O corpo deixa de ser sugerido simbolicamente, para ser apropriado poeticamente. Ele entra em cena para perder o equilíbrio. O estranhamento deixa de ser simbólico e passa a ser físico. Se tomarmos a tradição participativa da arte brasileira, dos bichos de Lygia Clark às naves de Ernesto Neto, sobressai na interação uma busca de harmonização entre corpo e mundo. Participação assumida como acolhimento. Neste caso, talvez mais ligado à tradição norte- americana, de Kaprow e Morris, temos uma relação de provocação, mesmo que aqui o aspecto lúdico do balanço, como se fosse uma gangorra, também se faça notar. Entretanto, mesmo brincando, o corpo tem que estar alerta, no risco de se desequilibrar. Como esclarece a artista, “pelo uso se da a transferência da tensão do objeto para o corpo. Quando o corpo se equilibra, ele se entrega e curte. Gosto deste jogo entre tensão e prazer, é interessante provocar estes sentimentos através de um objeto.” Depois deste contato direto do corpo com as plataformas de madeira – como vemos nestas esculturas intituladas exterior 1 e 2 – ele retoma sua virtualidade nas esculturas com molas. Aí o jogo com a tensão e o equilíbrio ca todo concentrado nas características do material e na sua efetivação formal. É como se as passagens entre o estável e o instável sentidas pelo corpo (ou pelo olho) subindo nas esculturas, fossem congeladas e retidas no momento de fixação da forma nestas outras peças. O desenho orgânico é recuperado, forçando a tensão para a dinâmica do gesto e da forma, do improviso e da precisão.

Estas características descritas acima — organicidade, improviso e precisão — aparecem também nas gravuras. Aqui sobressai o trabalho, a artesania, a intervenção junto aos materiais para conquistar um ritmo de texturas, linhas, sombras e cor na superfície da impressão. Este processo exige domínio do fazer, um conhecimento dos “desejos” da matéria, incorporando, todavia, os acasos, os imprevistos, que irrompem no transcorrer da fatura. Explicando-me algumas etapas, Frida deixa claro o seu interesse em provocar uma imperfeição que potencialize o efeito gráfico: “eu pulverizo um pó de ferro que gruda na cola, assim eu obtenho a textura. Deixo secar três horas e mexo na placa para tirar o excesso de pó de ferro. Ao fazer isso, a linha ca mais trêmula, ca a marca desse movimento, adicionando a idéia do tempo, de imperfeição, que me atrai”.

A não acomodação, a constante transformação das estratégias e resultados plásticos obtidos, revela uma artista em deslocamento, sem residência poética determinada, absorvendo elementos de cada contexto artístico em que conviveu. Por mais globalizado que seja o nosso mundo, somos atravessados por singularidades que nos distinguem e integram culturalmente. Quebrar tais referências é um mergulho na instabilidade, cujo enfrentamento, seja poético, seja existencial, leva ao despojamento e à recusa das convenções. Estes trabalhos de Frida Baranek são mais uma etapa neste exercício de despojamento.

Todas as citações da artista contidas neste texto foram extraídas de nossas conversas por email entre os meses de abril e junho de 2009.
© Luiz Camillo Osorio
In: Frida Baranek, Exteriores. Sao Paulo: Gabinete de Arte Raquel Arnaud, 2009. (divulgação)

Exterior I e II