Catherine Bompuis

Confrontos

Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro
October 2013

A escolha das obras de Frida Baranek para o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro obedece ao desejo de tornar visíveis alguns momentos de um percurso iniciado em 1984.

Desde seus primeiros trabalhos elabora-se a relação que, ao longo desses anos, a artista empreenderá com a matéria de sua escultura, relação que desafia sua resistência para levá-la à sua metamorfose: construir com e contra.

Confrontos remete tanto a uma atitude quanto a um processo de trabalho, introduzindo uma dimensão afetiva que transmite ao objeto uma vivência, uma emoção, em um confronto no qual esforçar-se e pôr-se à prova surgem como elementos constitutivos da experiência. A poética existencial e a necessidade de confrontar e de confrontar-se sem qualquer predeterminação formal revelam a abordagem fenomenológica desses objetos. Arte e vida formam um todo que se origina na experiência em si. A escultura de Frida Baranek é a expressão de suas sensações, de suas emoções, do exame de sua vida perceptiva. Merleau Ponty qualifica a percepção como uma fé perceptiva, onde perceber e imaginar são duas maneiras de pensar.

Cada objeto tem vida própria, é um objeto de memória, e se a questão remete a como abrir espaço no interior de si para dar-lhe vida e fazê-lo existir no espaço real, a terceira dimensão parece trazer-lhes a autonomia existencial que reivindicam.

As treze esculturas estão expostas de modo a privilegiar antes a relação das obras entre si que o critério da cronologia.

Duas dentre essas obras foram produzidas para a exposição: Armadilha e Aliança (2013).

Armadilha, metáfora da condição humana, constitui-se de nas hastes de ferro que desenham no espaço uma forma de aparência tão exível e elástica quanto a bambu. Em escala humana, esta armadilha incita à sensação de aprisionamento interior.

Aliança, obra constituída por vinte anéis de ferro seccionados em sua circunferência e ligados por um o de latão, imprime ela também seu grasmo no espaço e emite um som de sino quando seus anéis se entrechocam. Imagens, evocações, momentos de vida que aparecem e desaparecem.

As várias residências em países estrangeiros por mais de vinte anos e a dificuldade de transporte do material volumoso e pesado nem sempre permitiram que o trabalho pudesse ser conservado. A reconstituição de certas obras assevera-se fundamental para tornar visível esse percurso.

A obra Grand Titre (1995/2013), refeita para a exposição, abre-se como um ventre sobre uma desmultiplicação da própria peça: no seu interior esculturas em miniatura encontram-se insertas em balões que vão, no decorrer da exposição, perder ar e murchar até o seu estilhaçamento ou seu desaparecimento. Estas mesmas esculturas miniaturais alojadas dentro de vidro soprado aferram-se sobre a peça e as hastes de ferro que por ali escapam agarram-se ao teto e à parede como um animal estranho: atração e repulsão. As referências ao corpo, sem jamais serem ilustrativas, propõem uma experiência perceptiva, sensorial e espacial. A obra tem um tempo de vida e este princípio opõe-se à ideia de escultura como objeto permanente e imutável. O processo fixa as regras do jogo neste corpo a corpo com a matéria, e, ao expor sua fragilidade, a sua desilusão, expõe também o desaparecimento possível da obra.

Bolo (1991), constituído de os de ferro emaranhados sabre os quais parecem flutuar pedras de mármore, recortado e vendido em doze partes, foi igualmente reconstituído ao seu estado original para a exposição: Bolão (2013). O processo dá-lhe vida, mas quando desmontada a obra retorna a seu estado inicial: centenas de quilos de ferro e pedras de mármore.

A escultura de Frida Baranek burla a lei da gravidade, exibe chapas de aço dobradas como meras folhas de papel amassadas, constrói com ferro, aço ou mármore uma forma orgânica e intimista em uma experiência do fazer a cada vez renovada. Peso e massa são características da escultura, estas mesmas que a escultura de Frida Baranek engenha-se em fazer desaparecer, dando-nos a ilusão de ter invertido o real, mostrando seu reverso.

A obra Sem Título (1985), constituída de dois paralelepípedos um sobre o outro, onde entre eles acham-se dispostas caixas de madeira dentro das quais luzes acendem-se e apagam-se, intermitentes, é inspirada diretamente pela Favela do Vidigal. Expressa a sensação de opressão, uma inversão de valores e o perigo iminente para aqueles que vivem, não em cima, mas em baixo.

O látex, primeiro escorrendo em seu estado liquido, depois em estado sólido, e ainda de novo levado à sua aparência líquida em uma obra como Ma Mémoire (1998), sublinha o interesse pelo processo, como se desse processo resultante da interação do artista com a matéria dependesse a formalização da obra. A peça estende-se pelo solo como uma poça de lama nas quais estão grudados emaranhados de sisal. Essa obra está no limite da escultura, uma escultura líquida, uma não-escultura.

A vontade de subverter os materiais utilizados pela indústria revela o extremo fascínio que estes exercem sobre seu imaginário. De sua formação como arquiteta, que ela decidirá não exercer a m de dedicar-se plenamente e livremente à sua atividade em arte, ela guardará sempre intacto o interesse pelos materiais estruturais, os que permitem construir, e, no seu caso, desconstruir.

O uso do ferro, como do aço, remete a um só tempo às sensações de força e de sensualidade. A obra Unclassified (1992), produzida para a exposição Latin American Artists of the XX Century no Museu de Arte Moderna de Nova York, MoMA, em 1993, após itinerância por Sevilha, Colônia e Paris, afronta o pátio do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, numa total oposição aos grandes princípios que regem a arquitetura modernista. De formas deliberadamente não definidas e elevando-se para além de quatro metros de altura, a escultura é constituída por uma tonelada e meia de aço na qual partes excedentes da indústria militar americana acham-se incrustadas. Esse material industrial atua por analogia a uma natureza tropical, enquanto as partes dos aviões militares que ali se encontram aprisionadas são reduzidas a destroços no seio de uma floresta de aço.

Látex, sisal, bronze, pedra, ampolas, os elétricos, hastes de ferro, plástico, aço, pó de mármore, fazem parte dos principais materiais utilizados. Aqui trata-se ainda de opor materiais estruturais e materiais orgânicos mas os materiais estruturais parecem orgânicos e os orgânicos, estruturais.

Algumas obras brincam com a imagem de objetos do cotidiano abolindo as suas funções: uma rede que não permite o descanso, um armário aberto dos dois lados, um balanço sobre o qual não se pode sentar. A decisão de subtrair os objetos de seu uso mantendo-os, contudo, reconhecíveis, propõe uma visão que faz existir os contrários para melhor revelar nos objetos sua condição paradoxal. Sua reinscrição na esfera do imaginário tem origem em uma experiência emocional que os arranca do real.

Tenor, Sentimental, Album, Gala, Fatal, Veto, Original, Moral, Brutal (2000), é uma sequência de palavras comuns a quatro línguas: inglês, francês, português e alemão. Concebida á época em que vivia na Alemanha e não falava o alemão, a obra denuncia a ilusão das coisas e dos objetos. Nascida no Rio de Janeiro em uma família de judeus poloneses vítima do holocausto, Frida Baranek conceberá em Berlim obras que carregam o traço da transmissão de uma memória e o sofrimento que lhe é referente. Deusa Imortal (2000), um dos sete armários realizados pela artista, reenvia ao espaço psicológico onde os rolos de sisal suspensos como uma enorme cabeleira em um armário entreaberto fazem coexistir dois mundos: o privado e o público, a história pessoal e a barbárie.

A tensão interna de cada trabalho dene a presença visual de cada obra.

As afinidades talvez devam ser pesquisadas a partir dos “drippings” de Pollock através da ação e da energia que ele transmite ao campo pictórico; nas obras de Eva Hesse, por sua expressividade ou ainda na fusão interna entre o objeto e o sujeito, tão pesquisada por Lygia Clark.

Esta diligência voluntariamente intuitiva reivindica uma liberdade face aos dogmas da escultura modernista.

A escultura modernista, aquela que está aliada às formas tradicionais da escultura, faz parte dessa reconstrução ideológica do modernismo americano. Benjamim Buchloh fala da “via real traçada artificialmente por Greenberg entre o cubismo parisiense e a reconstrução americana do modernismo, armando que a história da escultura modernista não é tão linear nem tão homogênea quanta seus cronistas e historiadores, ou as exposições em formato de saldos, podem fazê-la parecer.”(1)

A história da arte do século XX não cessou de classificar, desclassificar e reclassificar os objetos tridimensionais conforme diferentes sistemas de convenção. Prestar-se-ia a escultura, mais do que outras expressões artísticas, aos numerosos acertos de conta da história da crítica de arte? Duchamp foi, entretanto, um dos primeiros a banir de sua obra as categorias de pintura e escultura.

A partir dos anos sessenta a escultura deixa de estar isolada da pintura, da instalação ou da performance, e a terceira dimensão já não constitui por si só um critério estético. Ao romper o espaço bidimensional com seus Bichos em 1960, Lygia Clark introduz uma ruptura nas categorias estabelecidas pelo modernismo americano.

A radical experiência de Lygia Clark ao abandonar a superfície da tela pelo espaço sem dúvida marcou profundamente as pesquisas de Frida Baranek. O cheio e o vazio, a morte do plano, os bichos, a proposição do instante, o ato, a nostalgia do corpo, a captura do tempo em suspensão, o corpo, a pedra e o ar, o homem como centro e a casa como corpo, as arquiteturas biológicas, o corpo coletivo, abrem novos espaços de pesquisa e de liberdade.

A proposta de Mário Pedrosa de substituir o não-objeto pelo trans-objeto durante uma conversa relatada por Lygia Clark em 1960 é premonitória das futuras pesquisas artísticas sobre a permeabilidade entre as formas artísticas.

“Então se também na minha expressão há a superação do plano que veio através da minha pesquisa, o que eu faço seria uma coisa nova em relação às categorias existentes, pois se os informais saem também para o relevo e nós saímos para o espaço, está na cara que o negócio de categorias está acabando mesmo e só a questão do nome não-objeto é que seria o impasse. O Mário Pedrosa acha que nas artes plásticas poderia ser o trans-objeto pois a transcendência vem ainda do próprio objeto.”(2)

Distante dos debates teóricos sobre o objeto de arte, a obra de Frida Baranek não emite qualquer armação sobre seu estado e seu devir. Refugiada no mais profundo de sua intimidade, reenvia-nos à sua impenetrabilidade, às suas fragilidades, aos equilíbrios e desequilíbrios que cam sem resposta: “É o que é.”

É de dentro desta experiência perceptiva que fazemos a experiência de nossa própria percepção.

A obra surge, portanto, nesse duplo movimento no qual entrar em si é também, como definia Hegel, sair de si.

A exposição deve ser capaz de dar conta dessa singular experiência, singular no tempo – ou melhor, no tempo da obra – e dá-la a compartilhar.

(1) Benjamin H.D. Buchloh. Construire (l’histoire de) Ia sculpture. Catálogo da Exposição. “Qu’est- ce que la sculpture moderne”? Centro Georges Pompidou. MNAM. Paris.1986
(2) Lygia Clark. 1960. Catálogo da exposição Lygia Clark. Fundação Tapies. Barcelona. 1997. Pág.141.

Exhibition view, MAM-RJ, 2013
Grand Titre, 1995-2003
Unclassified, 1992
Armadilha, 2013
Bolo/Bolão, 1990-2013
Tenor, Sentimental, Album, Gala, Fatal, Veto, Original, Moral, Brutal, 2000