Ana Carolina Ralston
Deslocamentos
Entre as tantas reinvenções da modernidade está o fato de termos gradativamente mudado o lugar e o estado das relações sociais. Se na Idade Média o objetivo era perdurar e estabelecer laços fixos e imutáveis, nos tempos atuais o deslocamento e a maleabilidade são chave para a compreensão de um mundo novo e flexível. A teoria acima descrita pelo filósofo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017) evoluiu pelos meandros da mente humana e trouxe reflexões também a partir das consequências dessa fluidez, que consiste, entre outros aspectos, no fato de nos deslocarmos de modo a termos a sensação muitas vezes equivocada de que estamos fora de encaixe, talvez no lugar errado, tarde ou cedo demais no contexto histórico ao que estamos todos inevitavelmente inseridos. É sobre esse caminho móvel e diverso que trata Deslocamentos, exposição da artista carioca Frida Baranek na Galeria Raquel Arnaud.
A própria trajetória de Baranek evidencia esse pensamento. Desde cedo transitou pelo mundo, habitando diversos países e adaptando-se de forma versátil ao seu entorno, de São Paulo a Lisboa, passando por Berlim, Londres Nova York e Paris. Londres. Observadora nata do que lhe rodeia, Baranek apropria-se disso através de materiais que vai coletando pelo caminho. Concentra grande parte de sua pesquisa na materialidade do mundo e, a partir dela, propõem novos formatos, em alguns processos descaracterizando-a, em outros, reforçando sua potência. A fluidez com que transita com seu corpo pelo espaço físico aparece na polpa e água que compõem os papeis, fio-condutor que conduz o espectador na atual mostra.
Essa camada de celulose, que nas mãos da artista ganha diversas formas e texturas, faz parte de sua trajetória desde os anos 90, quando, durante um projeto na Alemanha, foi desafiada a criar uma série de trabalhos a partir dela. Desde o primeiro momento, a mistura fluida ganhou corpo, massas físicas que evidenciavam o processo criativo de Baranek, que, mesmo no bidimensional, acontece de forma intuitiva e escultórica. Experimentar e transformar materiais são mecanismos naturais da artista, que transita com destreza entre os diversos suportes artísticos, de suas reconhecíveis esculturas em larga escala à mobilidade contida em um pigmento adicionado ao papel.
Com o tempo e a intimidade adquirida com a matéria-prima, a artista passou a produzir artesanalmente sua própria mistura de polpa e água, experimentando dessa forma relevos, gramaturas e adicionando materiais possíveis na composição de suas séries, como fios de seda, pó de ferro e arames. Em certo ponto, apropriou-se da técnica Collagraph, em que imprime suas gravuras através de chapas plásticas, mais maleáveis e que permitem um grau elevado de experimentação e interferência.
Se antes tais deslocamentos levavam a artista a criar majoritariamente corpos labirínticos, hoje Baranek também provoca ao trabalhar as camadas feitas em formas mais simples e geométricas. O desencaixe e a fluência da vida moderna e contemporânea da qual falava Bauman em suas teorias reaparece de forma subjetiva nas duas esculturas presentes no espaço – e que levam o nome desta exposição. Feitas em madeira, matéria-prima da celulose, e acrílico, as obras norteiam o pensamento e trabalho atual de Baranek, que desfruta do desembaraço da matéria para apresentar suas novas sobreposições. Com a ilusão de que podemos encaixar tais formas geométricas que ali se apresentam de maneira aparentemente descomplicada, somos envolvidos pelas camadas propostas por ela e, assim, nos deslocamos na sutileza das possibilidades.
Ana Carolina Ralston
curadora