Jean Marie Wasilik
Pausa Longa
Internationale Sommerakademie fur Bildende Kunst, Salzburg: | 2006
O que me impressionou de imediato nas esculturas de Frida Baranek foi a maneira coma elas, ao mesmo tempo, resistem e cedem perante a sua própria materialidade. O domínio que ela exerce sobre os seus meios não parece nunca controlador, pelo contrário: no lugar disso, há uma entrega palpável perante a fisicalidade dos materiais que a artista usa, que têm sido muitos. São arames de bronze e ferro, pigmento em pá, sisal, seda, balões de borracha murchos e esgarçados, chapas e correntes de ferro, fragmentos de aviões e mármore em blocos, lascas e grãos.
Alguns desses materiais são maleáveis por natureza, outros não. Mas nas mãos de Baranek, até os mais renitentes emergem transformados. Um trabalho corno Sem título (1991, p. 40 e 67) é um bom exemplo: ele é feito com esferas empilhadas de arame de ferro, constituindo uma forma que rasteja por dois metros e depois levanta-se no espaço por mais dois. Sobre esse emaranhado de ferro pousa um bloco de mármore cujo peso é negado pela leveza com que é sustentado pelas esferas sobre as quais se equilibra. O inorgânico e o impenetrável-o metal e o mármore-interagem de maneira orgânica e permeável, urn com o outro e cada qual com o espaço que criam e habitam. No entanto, da mesma maneira como palavras como inorgânico e orgânico estão sujeitas a deslocamentos de sentido, isso também ocorre no interior das peças graças à integridade do material.
Rêde Chorona (2004, p. 41 e 93) opera de maneira semelhante. É feito de os de seda e tas de cobre esticadas, sendo que a seda sustenta o cobre. Duas cordas grossas de seda suportam uma franja de tas de cobre transbordando até o chão. Como em muitos trabalhos de Baranek, evidencia-se um equilibrismo espacial que, de alguma maneira, consegue não parecer precário. Balance / (2004, p. 95) é interessante por simultaneamente apresentar e representar a estratégia de contrapeso de Baranek. Ele ainda é um balanço: argolas grossas de ferro formam duas correntes pesadas das quais sobressaem fiapos de o de bronze. Sobre a assento de ferro vê-se um pequeno monte de pigmento em pó que, imaginamos, se dispersaria mediante o menor movimento. Apesar de ser, talvez, mais explícito em Balance, a imobilidade é uma característica presente em toda a obra de Baranek; no entanto, é uma imobilidade que parece conter o início de um movimento em potencial, sugerindo mais uma pausa generosa do que uma condição de inércia.
Baranek declarou que suas esculturas começam com uma reação intuitiva a um ou mais materiais específicos. Ela não faz estudos preliminares; não sai em busca dos materiais “certos”. Eles chamam a sua atenção, e os trabalhos evoluem a partir desse primeiro encontro. Um processo análogo ocorre no espectador diante deles. Sua materialidade age como um gatilho fenomenológico que dispara uma sucessão de sensações, associações e contradições. Segundo Laura Hoptman, a questão do gênero molda o jogo de dicotomias na obra de Baranek.’ É feminina a operação de valorizar o intuitivo numa obra que extrai o orgânico a partir do inorgânico, o espaçoso do maçiço, o equilibrado do precário e o quieto do agitado.
Num conjunto francamente audacioso de novas esculturas de bra de vidro chamadas Speculum I, II, IU, and IV (200ó, p. 43 e 98-101), Baranek, a partir de uma fonte inesperada, levanta questões de gênero de maneira explícita. Esses trabalhos também começaram com uma primeira reação intuitiva, nesse caso diante de um objeto conhecido de qualquer mulher que tenha consultado um ginecologista. Usando um programa de computador capaz de gerar imagens em três dimensões, Baranek ampliou o speculum oito vezes. A partir desse modelo, criou moldes em bra de vidro. Se, nos trabalhos anteriores, o que chamei de uma reação fenomenológica à materialidade gera um desdobramento de significados, na série Speculum, o objeto representado toma a dianteira. Essas últimas peças são inconfundivelmente speculae, e o espaço entre as duas metades do instrumento é antes o espaço principal da vagina do que um espaço escultórico. A escala é fundamental: grande o suciente para impedir a literalidade, mas não tão grande a ponto de se transformar numa sátira Pop.
Mas como em toda a obra de Baranek, aqui também a materialidade é essencial. Depois de alterar a escala, a segunda operação que a artista efetua é a de transformar o aço cirúrgico numa bra de vidro cuja neutralidade tem o efeito de rebaixar, sem silenciar, as referências à função original do objeto. Como a pausa presente nos trabalhos anteriores, esse rebaixamento abre o campo conceitual e permite que a espectadora -ou talvez, mais significativamente, espectador-encontre o que de outra forma talvez lhe escapasse. Esse espaço conceitual é construído pelo uso sutil que Baranek faz dos seus materiais – um uso que ela elabora em cada obra da série Speculum. Em uma, vêem-se os fotosensíveis, que na luz do sol se transformam em uma trama de filigranas roxas visível justo abaixo da superfície. Em outra, arabescos de linhas grossas resultam de elásticos aparecendo dentro do molde. As supercies exteriores de uma terceira são cobertas de uma barba cômica de sisal coberta de tinta laranja. Todas lembram pelos e, no contexto do objeto, pelos do mons veneris. A quarta, no entanto, inverte dramaticamente a referência ao corpo feminino, ou talvez apenas modique os seus termos. É pintada com uma tinta iridescente automobilistica que oscila magnificamente entre o verde e o roxo. Ao invés de nos pro¬por referências a pelos púbicos – a sua ingovernabilidade e as suas associações ingovernáveis, que vão do desejo à ansidedade -a artista nos dá o acabamento lustroso e perfeito de um carro esporte. Mas é evidente que os carros de corrida ocupam o mesmo espaço psíquico de expectativas sexuais masculinas do que as declarações de potência e controle.
Baranek, na condição de mulher operando com as referências mais íntimas do corpo feminino, é herdeira do trabalho da primeira geração de feministas, especialmente Hannah Wilke e Carolee Schneemann, que usaram os seus próprios corpos como território para desafiar as concepções masculinas do feminino. Wilke caracterizou seu trabalho como “respeitando a condição de objeto do corpo”.2 Ao invés de negar a noção do corpo feminino enquanto objeto, Wilke o reivindicou como um espaço para o discurso feminino. Baranek faz uma operação análoga, apesar de deslocar a sua atenção para o corpo fisiológico, tão sujeito à censura e misticação quanto o corpo erótico. A série Speculum não está interessada em quebrar tabús mas em desmascará-los e, ao fazê-lo, nos desafiar a enfrentar definições alopáticas do feminino e meditar sobre a sua inadequação em termos da experiência feminina.