Paulo Herkenhoff

1999

Entulhos. Monturos de ferro e pedra. Restos de uma construção desastrada. Assim pode parecer a escultura recente de Frida Baranek ao olhar que sucumbir frente às exigências lógicas de sua obra. A própria artista propõe a tentação da falácia na referência às situações “reconstrutivas de sua escultura”.

Nos últimos anos, depois do pouso e do alarido da pintura neo-expressinista, assenta-se a poeira dos prazeres pictóricos. Passou uma banda de música, que deixou seus sons e pintura. Agora vê-se melhor a cena da escultura no Brasil.

Há um solo e um ar onde a escultura está historicamente concentrada em Camargo e Schendel e centrada na experiência radical dos neoconcretos: Weissmann, Amílcar, Clarck, Oiticica e de modo próprio em Pape e Willy de Castro. É uma escultura que se constrói como espaço e fenômeno para existir como dimensão do sujeito: resgatou o artista e abrigou o Outro o público, enquanto condição essencial.

Doutro tempo surge e se afirma uma geração que já não sem raíz, herda aquela tradição e solo e ar. A referência histórica não é aqui a retomada da pós-modernidade, nem o partido de uma herança nacionalista. Foi (é) uma instância viva de educação do olhar e de desenvolvimento de conhecimento. Ao mesmo tempo, incorpora, transforma e mesmo abandona heranças e marcas universais de Duchamp ao minimalismo, da arte povoar, da arte conceitual, do materismo e abre o seu próprio espaço mental e lugar no contexto da escultura contemporânea. Funda suas próprias questões. Esse tempo se condensa na obra de José Resende, Tunga, Waltercio Caldas, Ivens Machado, Fajardo, Cildo Meirelles, love de Freitas.

Nos últimos anos, surge uma nova geração com Marco do Valle, Nelson Felix, Angelo Venosa, Jax Leirner, Ana Tavares, Nuno Ramos, Maurício Bentes e Frida Baranek, entre outros. E mesmo mais recentemente Ernesto Neto, Lorena Geisel,… Bevilacqua, Eduardo Frota formam entre os que ampliam a presença da escultura no panorama brasileiro.

Em sua formação, com Tunga e João Carlos Goldberg, Frida Baranek traça sua genealogia e define a sua opção. É nesse quadro amplo da história recente da escultura no Brasil, que o trabalho de Frida Baranek deve ser dimensionado. Em termos gerais, a escultura contemporânea “nesse momento, errante e errática, descentrada e incerta, parece experimentar, pela primeira vez, sua a espacialidade, sua abertura virtual para todos os espaços” (Paulo Venâcio Filho).

A escultura de Frida Baranek, muitas vezes, é o objeto criado (como um dispositivo que requisita o espaço circundante) e esse mesmo espaço é isso e aquilo. Está aqui e ali.

O uso do vidro, como nos “Escudos (1983), opera a transparência como hipótese do ambíguio. São como esculturas wittgensteinianas, conceitos vivo da translucidez, espaço por onde trafega, na solidez, o próprio olhar. Nos “Escudos”, a superfície reflete o que está na frente incorpora o que está atrás, que pode ser a própria vastidão. Entrevisão. A escultura é aqui o espaço entre, no choque do visível frente/atrás: “Transparência e reflexo podem existir apenas na dimensão da profundidade de uma imagem visual” (“III.150 Durchsichtigkeit un Spiegeln gibt es nur in der Tiefendimension eines Gesichtsbildes”, Ludwig Wittgenstein, in “Remarks on Colour”).

Em “Não”, a palavra, gravada no vidro, se projeta em sombra no chão, como uma estranha noção e espelho fosco, negado e mutante com a circunavegacão do sol. Recentemente, em pedra e ferro, os seus “testemunhos do
desastre” (Lorenzo Mammi), vindos de outro lugar, podem ir-se do seu equilíbrio precário, das molas tensas e torsões, dos aprisionamentos em emaranhados, como o desastre pudesse se recompor em desastre (e não em “obra”) e se esparramar pelo chão adjacente. Aqui o objeto é uma força centrífuga aspirando por mais espaço. Essa memória reorganizada do caos, são como catapultas disparadas, forças dispersas remontadas em novas estruturas.

No seu projeto “Ilha” (1984), uma bóia de plástico acetinado (0,90m de diâmetro e 30,00 de comprimento) flutuando na Lagoa Rodrigo de Freitas, recompunha a forma da pedra Dois Irmãos. Aí também a escultura de Frida Baranek compõe-se do espaço circundante ao foco do olhar, como fenômeno físico e operação mental. A “Ilha”, nessa geografia, continua não podendo prescindir do conceito de circundação da água. A “Ilha” é um objeto cercado de água por todos os lados… Essa “Ilha” se mira ainda no espelho d’água e, no seu acetinado capta e desenvolve a luz refletida. Depois dessas questões físicas, a “Ilha” induz à comparação de sua forma com a de Dois Irmãos, presente à distância, e confrontadas no olhar. A escultura de Frida Baranek combina estados e situações díspares, unidos por uma lógica de um olhar de estranheza. Essas relações estranhas não se calcam apenas no confronto simétrico de opostos ou no ambíguo, mas inversões e inesperadas relações poéticas.

Paralelepípedos de pedra repousam em gravidade tensa sobre vergalhões torcidos, presos a chapas de ferro, como se uma cama irregular de um faquir. Chapas de aço se articulam, apoiadas sobre molas e pedras ou transpassadas por vergalhões tortos, pontos únicos de frágil contato com o chão. Uma pedra tensiona uma espiral. Há uma tensão flutuante nesse jogo do forças aprisionadas mutuamente como se um leve toque, pudesse alterar a sua organização, liberar o movimento e redefinir o tempo da obra como uma transitoriedade.

Câmaras de ar e chapas de vidro também combinam estranhezas: o aprisionamento do ar e obstáculos do olhar articulam novas relações. Pneus e bolas de borrachas são pulmões e “alma” (pneuma) nessa nova corporeidade. Infladas com ar, água e areia (três transparências, pois na areia está o grão e a semente do vidro), as câmaras se deformam fisicamente em alguns locais, ao mesmo tempo em que se deforma a sua função de bóia, pois passa a acumular as funções de flutuar e submergir em pontos distintos do corpo.

Na exposição na Petite Galerie (1985), uma escultura apresentava-se como um “balão” em situação invertida. Uma grande bola vermelha (o “bolão”), encostada no chão, parecia forçada a indicar a gravidade, enquanto no topo da escultura uma pedra (não era âncora nem lastro), mas estava no espaço do “mais leve que o ar”. Mais que uma Passarola essa escultura é um Ícaro irônico. Uma queda para cima. Sua ironia poupa o personagem, para, impiedosamente promover a queda do próprio olhar, na falência de sua lógica.

Outra situação de estranheza se arca com uma escultura (1987) em que um vergalhão tem uma bilha numa das extremidades e um gancho redondo na outra. Esfera e semicírculo de diâmetro equivalente. Afinal “a diferença entre o círculo e a bola é o peso”: “realidade menos representação da realidade igual a peso”, como se propõe na obra de Cildo Meirelles (1976). (Ou, ancestralmente, “il punto è la prima ubicaziones tridimensionale – la sfera inesistente”, de Vincenzo Agnetti, 1970). No entanto, ao estabelecer a hipótese de confronto visual de esfera e círculo, Frida Baranek transforma esse objeto num estalão do olhar. Seu fulcro se desequilibraria na comparação do peso e massa de cada extremo, mas se harmonizaria na percepção da forma e sua proporção. O olhar transita entre esse desequilíbrio e simetria. É nesse trânsito mental que se detona o tempo da imobilidade.

Nesses “montes de entulho”, organizados consistentemente como escultura, não ocorre o manuseio da matéria para a produção de aparências ou equilíbrio, é um não materismo. É um não formalismo e, sobretudo, um não geometrismo. Fundamentalmente, a artista quer manusear o impalpável, as forças que podem se articular numa nova situação.

Na escultura de Frida Baranek, a execução tem pouca importância para a dimensão de temporalidade da memória do gesto. A ferrugem, ainda que lembrando “que houve um tempo em que aquelas superfícies foram lisas e lúcidas” (Lorenzo Mammi), não têm a dimensão de história natural do metal, que reporá a escultura na condição primordial de pó, como na ferrugem de Amílcar de Castro. Muito menos seu tempo segue a ordem escrita da cronologia ou sincronia, como a “hipotese de um passado e a promessa de um futuro desenvolvimento” (ainda Lorenzo Mammi).

Nessa obra existe um tempo plural. Desamarrado das efemérides e do curso mecânico (feitura, pó, história, cronologia), o tempo emerge aqui e ali como instâncias do seu instante. É muito mais próximo do tempo abstrato da música. As chapas de ferro, por mais que similares, nunca são tratadas como módulo, do que resultaria um ritmo e o conseqüente tempo mecânico. Nos seus amassado, cada chapa encontra sua individualidade como fragmento.

A hipótese da renovação do desastre é mais que repetição da história, ou uma operação do tempo circular ou ainda uma evocação do tempomísticodo eterno retorno. É o tempo ansioso do iminente, do tensamente iminente. Da tensão condensada em iminência. Pode-se aqui evocar o título de algumas esculturas de Jean Dubuffet (1954): “Pequenas estátuas da vida precária”. A existência se desenrola como hipótese de dissolução. A instabilidade desse equilíbrio de coisas envolvem a possibilidade de movimento.

Esses fragmentos ordenados são como Fragmento de Novalis: “Tudo é naturalmente eterno. A mortalidade e instabilidade são privilégios das naturezas superiores” ou ainda “O espírito é essencialmente repouso. O pesadume deriva do espírito”. Há uma flutuação, seja naquela tensão física entre as partes, seja no percurso mental do olhar em algumas obras. A escultura atual de Frida Baranek vive como situação, sua estrutura é um estar. Um estado de coisas. A obra é mais uma duradoura transitoriedade do que a sua própria afirmação como ato concluso. Não é o “fim”. É mais o agora…

© Paulo Herkenhoff

Ilha, 1984