Knut Ebeling
Fios e Tubos
Gabinete de Arte Raquel Arnaud, São Paulo | 2001
Até o presente as obras de Frida Baranek podem ser caracterizadas dentro da concepção Wittgensteiniana do saber como fio. Suas combinações formavam um todo orgânico cuja força residia na assimilação das diferenças. A presença física de sua obra não provinha de uma única e coerente unidade de material mas de uma dupla desintegração; primeiro, o todo desintegrado pela mistura alquímica de diversos materiais e, em seguida, a profunda desintegração de cada um destes mesmos materiais.
Wittgenstein escreve: “Nós expandimos as nossas idéias (….) do mesmo modo que, ao tecermos um fio, entrelaçamos fibra por fibra. A força do fio não vem de uma só fibra que perpassa toda sua extensão, mas de várias fibras que se entrelaçam umas às outras”.
Dentre a imensa variedade de concepções do saber desenvolvidas através da história das idéias, podemos fazer uma distinção fundamenta! quando dizemos que existem forças externas e internas responsáveis pela formação do saber. Existem espaços e existem fios de saber. A citação de Wittgenstein desenvolve o conceito do saber como fio.
Wittgenstein nos diz que fibras diferentes formam um fio. Da mesma forma, o saber é composto por várias fontes e jamais por uma só unidade, combinando em si diversos fios. E organizado como um cabo moderno. A multiplicidade de diferentes fibras é o que faz com que um fio ou um cabo moderno sejam duráveis; o caos da multiplicidade é responsável pela força da unidade. Nesta concepção do saber, é o próprio material que constitui o saber. A combinação de diversos elementos, a própria presença física, conduzem a um saber orgânico sempre constituído por diferenças. Dentro deste conceito do saber, podemos situar a obra de Frida Baranek.
A filosofia moderna trouxe um segundo conceito do saber. A concepção do saber como espaço ou tubo é mais recente do que a concepção do saber como fio. Michel Foucault nos diz que não é o objeto em si que possui um significado específico e que conseqüentemente forma um determinado saber. O saber não é a soma de vários conteúdos; é a forma na qual o objeto se encerra, seu entorno, que determina nosso conhecimento dele. O saber é a consequência de contextos, não de conteúdos. É formado por discretas fronteiras. Os tubos formam nítidas fronteiras ao passo que os fios não. Portanto, pode-se dizer que é o espaço em torno de alguma coisa que determina o que ela é e o que ela não é.
Esta revolução estruturalista foi provocada pela simples idéia de que são os espaços que moldam o saber. Quando Baranek põe armários dentro de uma galeria, o novo espaço que ela cria dentro desse espaço indubitavelmente cria uma nova forma de saber visual. Embora o ar encerrado pelo armário permaneça o mesmo, o espaço que o cerca já não é mais o mesmo. Subitamente surgem distinções tais como dentro e fora, aberto e fechado, cheio e vazio, visível e invisível, secreto e exposto — distinções, julgamentos e afirmações que constituem a base de um saber visual que antes não estava lá.
O mérito da atual exposição de Frida Baranek é o de ter combinado em uma peça os dois modelos de saber visual. Primeiro, Baranek colocou na sala linhas que funcionam como fronteiras. É dos limites desses armários que surgem dentro da sala novos espaços de conhecimento visual. É impossível resistir ao instinto de abrir uma dessas maravilhosas e fantásticas caixas para descobrir os fios e tubos que elas encerram: novos espaços e novos não-espaços. Ocorre, então, uma importante transformação: colocar cabos e tubos em armários não significa a mera adição de dois elementos que continuam iguais. A obra de Baranek não sena uma verdadeira síntese de dois elementos se cada um deles não fosse fundamentalmente alterado de sua própria natureza. Há uma profunda interpenetração e transformação do dentro e do fora; o exterior modifica o interior tanto quanto o interior modifica o exterior. Um armário que não contém roupas, camisas e saias deixa de ser um armário comum para tornar-se profundamente alienado de sua função original. O estranho, a matéria bruta no espaço transformam o armário em lugar de exposição, um pequeno museu que evoca as famosas boites-en-valise de Marcel Duchamp.
Não é apenas o interior do armário mágico que é transformado e alienado. Seu interior e conteúdo são alterados também pelo exterior. Os fios e tubos não pendem entre dois postes, como em trabalhos anteriores de Baranek. Embora ainda pendentes, não formam mais uma curva horizontal. Pendendo de uma haste horizontal, caem verticalmente até a base do armário.
Ainda mais importante, a matéria bruta pendurada no armário deixa de ser matéria bruta. O aspecto mais importante da atual exposição é que a criação de Baranek altera a própria natureza da matéria bruta. Como os pioneiros da Arte Povera, ela não trabalha apenas com a força das forças primárias mas questiona e desafia os conceitos de natureza, primazia e origem. Penduradas no armário em lugar de temos e saias, o material é domesticado e, de algum modo, cultivado. Não se pensa mais na natureza do material, no poder elementar do cobre ou da borracha. As associações com a matéria prima são substituídas pelas muitas associações que surgem através da colocação de um elemento estranho no armário: associações com a infância e o medo, com segredos ou coisas escondidas.
Na cultura ocidental tudo que é estranho é sempre escondido. Na obra de Baranek, no entanto, esconde-se o estranho para que ele seja descoberto. Assim, a visão do espectador é desviada da natureza do material para sua sublimação, para as muitas maneiras de se transformar a natureza em cultura e os fios em tubos.